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Carta Aberta de oposição à presunção jurídica da residência alternada

As entidades abaixo subscritas enfatizam a sua posição em favor de uma real igualdade entre homens e mulheres na família e dos seus direitos parentais, consagrando que pais e mães devem ser iguais nos seus direitos, como nos deveres e responsabilidades para com as filhas e filhos, salvaguardando sempre o superior interesse das crianças. Nesse sentido, as entidades abaixo subscritas expressam a sua oposição à petição em prol da presunção jurídica da residência alternada para crianças de pais e mães separados ou divorciados, que foi presente à Assembleia no dia 19 de junho de 2018.

 

A nossa posição é de que a lei portuguesa não necessita de alterações neste ponto concreto, dado que já permite o modelo da residência alternada, se assim for pretendido pela família.

As famílias são livres de determinar qual o modelo de guarda e residência que melhor se lhes aplica, tal como são livres de se estruturar e organizar na pendência do casamento/relação.

A separação ou divórcio não podem ser um mecanismo para se retirarem direitos e liberdades garantidos há décadas.

A intervenção do Estado na família tem limites constitucionais que não podem ser ultrapassados, sob pena de ser posto em causa o princípio da autorregulamentação da família. Devemos evitar judicializar todos os atos da vida das crianças, agravando ainda mais a sobrecarga dos tribunais.

A associação promotora da petição em causa utiliza como argumento um estudo sueco, mas não refere que a Suécia não criou nenhuma presunção jurídica semelhante, como também a maioria dos países europeus não o fez. Nem explica que a nossa realidade é diferente da sueca, onde apenas existem 2% de divórcios litigiosos, sendo os restantes 98% acordos parentais assinados fora dos tribunais.

A investigação científica desaconselha modelos rígidos e únicos, com pretensões de servirem para todos os casos, e propõe, antes, uma decisão baseada nos factos de cada caso, cuidadosamente ponderados, em nome da estabilidade da criança e das suas necessidades específicas de segurança e de afeto, de acordo com a sua idade e, sempre que possível, de acordo com a sua opinião.

As famílias precisam dessa liberdade de escolha, de saberem que há diferentes modelos de guarda e residência, que não são certos ou errados por si só. O modelo certo será o que melhor se adeque a cada caso concreto, salvaguardando o bem-estar e o superior interesse da criança. O modelo da residência alternada é o que exige os critérios de aplicação mais rigorosos, o que o torna, também por esse motivo, completamente desadequado para ser usado como regime-regra. Com efeito, a alternância de residência é considerada um modelo viável apenas para um grupo de famílias com o seguinte perfil relacional e estrutural:

(a) Ausência de suspeita ou indícios de violência doméstica e de abuso sexual de crianças intrafamiliar;

(b) ausência de conflitualidade entre os pais;

(c) proximidade geográfica;

(d) capacidade de cooperação elevada entre os pais;

(e) modelos educacionais centrados na criança, em que esta é parte integrante da forma como os pais organizam a logística da alternância;

(f) compromisso de ambos os pais para fazer com que a parentalidade partilhada e a residência alternada funcionem;

(g) ambos os pais devem gozar, no seu local de trabalho, de práticas laborais amigas da família;

(h) estabilidade financeira de ambos;

(i) confiança de cada um dos pais na competência do outro como progenitor.

Fora destes parâmetros rígidos, a residência alternada é desaconselhada, por perniciosa, contribuindo para o aumento da conflitualidade e para a instabilidade psicológica das crianças.

Há unanimidade entre os investigadores em torno da ideia de que o conflito parental afeta negativamente o bem-estar das crianças após o divórcio. A investigação demonstra que a guarda conjunta física e a residência alternada têm efeitos prejudiciais para as crianças nas famílias com elevada conflitualidade e não promovem a cooperação dos pais e mães.

Em casos de suspeita ou indícios de violência doméstica e de abuso sexual de crianças intrafamiliar não deverá ser decretada a guarda partilhada e muito menos a residência alternada – de modo a ressalvar a proteção das crianças. Estes fenómenos não devem ser concetualizados como uma forma extrema de conflito parental, mas como violações dos direitos humanos. A sua etiologia vai muito para além do conflito. Trata-se de crimes, de dimensão epidémica nas sociedades, e que ocorrem com muito mais frequência do que pensam os leigos e os profissionais do direito e da psicologia, que prestam assistência às famílias após o divórcio.

Em crimes de violência doméstica, os tribunais de família tratam muitas vezes estes casos como um conflito e tentam impor a residência alternada na esperança de pacificar a família, mas acabando por colocar as crianças em grave perigo e aumentando ainda a situação de vulnerabilidade das vítimas. Portugal é um país onde são assassinadas uma média de 30 mulheres por ano e a maior parte dessas mulheres tem filhos e filhas com o agressor – razão pela qual é necessário garantir indubitavelmente o bem-estar das crianças, tal como é enquadrado na Convenção sobre os Direitos da Criança ratificada por Portugal.

A violência tem consequências graves para a saúde das crianças. A separação da vítima com o agressor permite que as crianças saiam de um ambiente de violência prejudicial à sua saúde física e mental e à estabilidade necessária para o seu são desenvolvimento. Sem medidas de proteção das vítimas, nos processos de regulação das responsabilidades parentais, a violência continua após a separação e as crianças são instrumentalizadas pelos agressores. Em separações familiares, a proteção e a segurança das crianças e das suas mães, vítimas de violência (que podem ser dezenas de milhares em Portugal), têm prioridade máxima.

A necessidade de aplicar e fortalecer as medidas destinadas a garantir a segurança das crianças e mulheres, e a ausência de contato com o agressor são questões prioritárias. Este compromisso foi assumido por Portugal quando assinou, ratificou e aprovou a Convenção de Istambul, em 2013.

O princípio, segundo o qual a residência alternada da criança passa a constituir uma presunção jurídica, a fim de traduzir a igualdade entre os pais, compromete, em situações de violência, o bem-estar e a segurança das crianças.

Reiteramos a nossa posição de que não deve ser adotado um modelo de residência como regra; as famílias devem continuar a ser livres para selecionarem o modelo que melhor se adeque a si mesmas e que proteja sempre o superior interesse da criança. Neste sentido, cada caso deverá ser tratado de forma única, permitindo à família determinar qual o melhor modelo de guarda e residência a aplicar para garantir que a criança tenha direito a crescer num ambiente familiar propício a um desenvolvimento saudável. E jamais esse regime regra poderá ser a residência alternada, sob pena de violação direta da lei europeia e das convenções internacionais de que Portugal é parte.

Por todo o exposto, requeremos que não sejam tomadas medidas legislativas que imponham uma presunção jurídica de residência alternada. Esta presunção teria, necessariamente, por consequência o retrocesso dos direitos das crianças e das suas famílias.

Por todo o exposto, as entidades signatárias consideram que a Assembleia da República não deve conceder provimento à pretensão constante da petição em apreço.

Os signatários,

APMJ – Associação Portuguesa de Mulheres Juristas

APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima

AMCV - Associação de Mulheres Contra a Violência

UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta

Capazes – Associação Capazes

Dignidade - Associação para os Direitos das Mulheres e Crianças

Projecto Criar - Associação Projecto Criar

Quebrar o Silêncio – Associação de Apoio a homens vítimas de abuso sexual

Amarca - Associação e Movimento de Alerta à Retirada de Crianças e Adolescentes

ASM - Associação Ser Mulher

Associação Soroptimist Internacional Clube Porto Invicta

Associação Mulheres sem Fronteiras

Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres

EOS - Associação de Estudos, Cooperação e Desenvolvimento

Mén Non - Associação de Mulheres de São Tomé e Príncipe em Portugal

CooLabora

Fundação Cuidar o Futuro

Associação Fernão Mendes Pinto

APEM - Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres

Associação de Mulheres Cabo-Verdianas na Diáspora em Portugal

Questão de Igualdade - Associação para Inovação Social

Associação Mulher Séc. XXI

GAIP - Associação de Apoio e Intervenção em Psicologia

ACF - Contra o Femicídio - Associação de Familiares e Amigas/os de Vítimas de Femicídio